quinta-feira, 19 de junho de 2008
O Homem do Nordeste - Quatro Séculos de Silêncio
A estrutura social e política do complexo Nordeste brasileiro predominam até hoje com autoritarismo e como arbítrio social, que sob influência, desenvolve atividades sociais e políticas, em que se patenteiam interesses de grupos pela afirmação de poder. O homem nordestino continua o mesmo: honesto, perseverante e paciente. Mas ressurgirá ainda, para corrigir essa falha, preencher esse espaço que ficou aberto durante tanto tempo e eliminar um hiato nos registros dos fatos históricos.
O povoamento do Brasil começou em 1534, quando este foi dividido em capitanias e dadas a seus donatários os quais tinham poderes ilimitados sobre os colonos, acumulando o poder Executivo, Judiciário e Legislativo. Ano em que Martin Afonso fixa a criação de gado na zona açucareira de Pernambuco, capitania que mais prosperou. Todos os povoados se constituíram no litoral, pois os donatários não tinham interesse pelo interior. O fenômeno latifundiário no Brasil é a própria história do nordeste brasileiro, onde os recém-imigrados, pioneiros e desbravadores já senhores de sesmarias - sempre fiéis à Coroa espoliadora das riquezas da colônia - tornaram-se grandes proprietários.
Foi com o estabelecimento das capitanias que se desenvolveu progressivamente o tráfico de escravos para o trabalho nas culturas da cana-de-açúcar, do fumo e nas fazendas. Dentro do seu domínio tinha o fazendeiro todo o produto do seu trabalho, de caráter mercantil, para o abastecimento do mercado estrangeiro, pois havia ausência de um mercado interno, somente adquirido com a penetração do colonizador no interior. O fato é que estes colonos - donos de sesmarias - não emigraram para trabalhar na terra, mas para serem proprietários delas.
A colonização do Recôncavo baiano, onde foram introduzidos os primeiros engenhos e canaviais, era formado por fazendeiros ou simplesmente criador de gado, pois esta criação era uma dependência dos engenhos, para a substituição da força escravista, servindo também estes animais com grande utilidade na movimentação dos trapiches e moinhos, além de fornecer alimentação. Na Bahia, uma grande quantidade de gado chegou no início do século XVII, quando Fernão Dias penetrou nos sertões indo até o rio São Francisco, onde instalaram os primeiros currais. Já numa fase posterior, quando estes senhores penetraram mais para o interior, deixam de ser o “senhor de engenho”, dividindo essas atividades e assim foram conquistando e povoando os sertões, onde os animais eram criados soltos, misturados, pertencentes a diversos proprietários, apenas com a marca do dono. Somente as roças costumavam ser cercadas para evitar a entrada do gado.
O poderio latifundiário no sertão da Bahia era imenso, pertencendo quase tudo a duas principais famílias da mesma cidade, os Garcia D’Ávila e os Guedes de Brito. “A casa da Torre tem duzentas léguas pelo rio São Francisco acima, à mão direita, indo para o Sul e indo ao dito rio para o Norte chega a oitenta léguas. E os herdeiros do Mestre de Campo Antônio Guedes possuem desde o Morro do Chapéu, até a nascente do rio das Velhas, cento e sessenta léguas. E nestas terras, parte dos donos delas têm currais próprios e parte são dos que arrendaram sítios delas, pagando por cada sítio, que ordinariamente é de uma légua, cada ano, dez mil réis de forra”. O povoamento do sertão tomou mais impulso no segundo século da nossa história, terminando sua grande fase de conquista ao se iniciar o século XVIII, salvo algumas penetrações esparsas de entradistas, sem pretensões de permanência, continuando o sertão insulado, enquanto no litoral se erguiam vilas e povoações.
Faltavam às terras do interior os elementos que haviam proporcionado uma intensificação mais rápida do povoamento no litoral, em virtude das populações se apoiarem na lavoura canavieira, algodão, tabaco ou no extrativismo pau-brasil. Enquanto que no sertão existia apenas a atração duvidosa de possibilidades minerais, que animou alguns aventureiros a se internarem nas terras sertanejas. Mas estas expedições não tiveram grandes êxitos no que se refere ao povoamento. Foi Belchior Dias Moreira, neto do famoso “Caramuru”, o primeiro a desbravar o interior da Bahia e Sergipe, onde pretendia encontrar ricas jazidas de prata. Suas informações fantasiosas animaram outros expedicionários, apesar de terem o índio como obstáculo à penetração, e este impacto do homem colonizador causou prolongadas lutas, que dizimaram os primitivos ocupantes da região.
Os sertanejos são todos aqueles que habitavam no campo ou na roça. Seu senso de liderança está no calor de suas veias. É nato esse temperamento em todos os nordestinos que hoje se espalham em larga escala pelo país. O sertanejo surgiu quando os dramas sociais começaram a agravar-se, preferindo fugir das fazendas dos latifúndios, penetrando na caatinga, e descobrindo assim os sertões. Rústico, agreste e rude, o nordestino vivia sob um clima de terror. Não havia leis, direitos nem justiça. Levados pelas causas econômicas e sociais, sem terra, sem trabalho decente eram obrigados a vender sua força de trabalho aos exploradores da terra, os senhores coronéis, a quem sempre respeitavam, pelo seu poderio de força. Trabalhavam num regime de 12 horas por dia, vivendo em semi-servidão, mas não suportaram por muito tempo.
Levando em conta as conseqüências decorrentes de um clima hostil, a população sertaneja tem uma característica própria, mesmo nos anos mais duros da seca. O nordestino não abandona a terra. Este acontecimento faz parte da tradição e é um complemento de sua própria desgraça, no dizer de Euclides da Cunha “o sertanejo é, antes de tudo, um forte...”, apesar de possuir as características mais contraditórias de sua formação biológica. Na sua formação étnica predomina a figura do colonizador português com o elemento indígena, resultando desse cruzamento o mameluco. Mas nos sertões baianos, em certos trechos prevalece forte mestiçagem negróide. Os Sertões da Bahia, constituídos de matos ralos, cerrados e capoeiras, se estendem por tudo o Raso da Catarina, tabuleiro com pouco mais de 400 metros de altitude e quase 5 mil metros quadrados de caatinga baixa e espinhosa, com pequenos rios que no inverno deságuam nos afluentes do rio São Francisco ou na margem esquerda do Vasa-Barris. Essa região compreende mais de dez cidades, desde o sudoeste da cachoeira de Paulo Afonso, estendendo-se a Euclides da Cunha, até Jeremoabo, que serviu de refúgio para Lampião e seu bando.
Jagunço - Segundo Câmara Cascudo, é uma espécie do chuço, pauferrado, haste de madeira com ponta de ferro aguçada, arma de ataque e defesa, que, com o passar do tempo, chamou-se de jagunço a quem o manejava. Um jagunço sozinho é terrível, agrupado sob a proteção política é pior ainda. É chamado também de capanga ou guarda-costas. São corajosos e não deixarão de mostrar perversidade, são homens que trabalham e recebem um pagamento do patrão. O contratante tem como principal atividade proteger a propriedade e a família do fazendeiro, mas poderá desempenhar funções de vaquejar o gado, além de obedecer a qualquer mandado para práticas de violências e vinganças. As autoridades públicas da época, acobertavam seus atos, temendo seus chefes, os mandantes, os políticos, os proprietários de terras. Os jagunços portavam armas das mais modernas, quase sempre do Exército, mas preferiam a carabina Winchester, por ser mais leve e de manejo fácil. O jaguncismo no Brasil se alastrou por todo o interior do país, mas a sua passagem pelo rio São Francisco deixaria marcada sua figura lendária, onde existiam vários grupos, sendo muito comum um jagunço passar de um grupo para o outro, sempre à procura de grupos que tinham os melhores atiradores. O jagunço é desconfiado, bandoleiro por definição das circunstâncias e muito diferente dos cangaceiros.
Cangaceiro - Bandido nômade, salteador que, em grupo ou em bando (cangaceirada), pegou em armas e fez nos sertões, com suas mãos, a própria justiça. Independente, não trabalha para ninguém, viveu a percorrer os lugares roubando e matando os ricos para amparar os pobres camponeses; “é um revoltado e parte com um fim: vingar. E para vingar enfrenta a polícia contra a qual luta e mata para não morrer”.
A grande seca que assolou o Nordeste, entre 1877/1879 é motivo para aparecer no cenário brasileiro um dos primeiros grupos de cangaceiros, comandado por Jesuíno Brilhante, que assaltava os comboios destinados aos fazendeiros, ou mesmo do Governo Imperial para distribuir com os flagelados. Jesuíno ganhou fama e proteção do povo, que muito rezava por ele e ficou mais conhecido na época através dos improvisos feitos pelos violeiros mais afamados do Nordeste, Inácio da Caatingueira e Romano dos Teixeiras. O cangaceiro do Nordeste foi o resultado da ofensiva de uma época onde os coronéis-casca-grossa, com o absoluto apoio dos governantes, ditavam suas próprias leis em seus domínios. Em 1896 surgia no Nordeste outro famoso bando, chefiado por Antônio Silvino, que percorreu os sertões durante dezoito anos, mas coube a Virgulino Ferreira da Silva, “Lampião”, a chefia do mais temeroso grupo. O Rei do Cangaço ou Governador do Sertão percorreu, em vinte anos, cinco Estado do Brasil. Outros afamados: Sebastião e Sinhô. Em 1933 as constantes perseguições policiais ao bando de Lampião, por ordem do capitão, o grupo foi dividido, parte com ele e outra com Corisco “O Diabo Louro” (Cristino Gomes da Silva), talvez o maior guerrilheiro do sertão. O cangaço foi escolhido como um gênero de vida, o único meio de se ganhar a vida e de se fazer justiça aos coronéis latifundiários.
Pistoleiro - É um farejador de pistas. Assemelha-se um pouco com o jagunço, que impreterivelmente, não deve pertencer à região para onde foi contratado pelo fazendeiro, a dar fim em algum inimigo seu. Normalmente o pistoleiro recebe metade do valor combinado, recebendo o restante quando terminado o serviço. Ele é um homem frio, corajoso e de pouca fala, que ganha a vida matando pessoas. Dizem que ao aceitar uma proposta já sente raiva do sujeito, reza e faz missa de corpo presente encomendando o defunto. Bem trajado parecendo gente da capital, pode-o andar pelas redondezas da vítima sem levantar suspeito e muitas vezes chega a convidá-la para beber ou comer qualquer coisa e, à traição, o mata. O pistoleiro é contratado para que o caso fique em completo sigilo. Feito o serviço dificilmente aceitará nova empreitada por aquelas bandas.
Vaqueiro - É todo aquele que guarda, conduz gado ou vacum. É o mesmo boiadeiro, o tocador de boiada, negociante de gado. O vaqueiro que surgiu com o ciclo do gado do Nordeste e Sul do Brasil, diferenciam somente na indumentária mas igualam na coragem, na audácia e no desprendimento. É um homem que trabalha para o fazendeiro possuidor de grandes oásis, quase sempre habita no litoral, e a este é incumbida uma árdua tarefa que consiste em cuidar do gado, desde o nascer até a condução do mesmo a outras fazendas ou à cidade, onde será transportado para a capital. O ofício de vaquejar vem de berço. Desde menino, o traje do vaqueiro nordestino consiste em gibão, colete, perneira, alpargatas ou botas e chapéu, tudo isso feito em couro curtido. Aparentemente parece absurdo o uso de tal indumentária sob uma temperatura de estarrecer. Mas esse traje é de vital importância, ele protege o vaqueiro contra os espinhos dos cactos, das geremas e dos galhos secos.
O fato é que não existiam pastos nem limites cercados nas fazendas. O gado se emprenhava nas caatingas à procura de água e ração e se afastava às vezes légua da fazenda e lá ficava semanas. Tal proteção também se estende aos animais de montaria, como mantas para proteger as ancas, cabeçal dos olhos e o peitoral, tudo confeccionado em couro. Apesar de toda miséria que o circunda pela vida, o vaqueiro tem horas felizes. Quando da vaquejada, por exemplo - a festa mais tradicional do ciclo do gado no Nordeste. São grupos de vaqueiros que, reunidos, demonstram agilidade e habilidade: o gado corre em disparada mas é perseguido por dois vaqueiros que ao alcançá-lo, o cavaleiro da direita envolve a cauda do animal na mão e puxa com bastante firmeza, desequilibrando-o para, em seguida, se estatelar no chão com as patas para o ar. As vaquejadas realizadas no tempo das apartações e das marcações do gado, onde os vaqueiros tangem e pacificam o gado quando há “estouro”, ao som dos aboios e dos berrantes, feitos com o próprio chifre do animal. “O aboio não só é bonito, de uma beleza bárbara primitiva, como é, do mesmo passo, envolvente e contagiante... Quem numa fazenda de gado dos sertões nordestinos ouve, num fim de tarde, subir aos ares o dolente canto de um aboio, tem também vontade de aboiar”. Mas hoje ela tornou-se grande lazer da burguesia rural, onde raramente os participantes são vaqueiros e sim filhos de fazendeiros, homens letrados do litoral, e pouca coisa foram preservada das vaquejadas tradicionais.
Tropeiro - Já extinto por completo das veredas dos sertões, devido ao avanço tecnológico dos meios de comunicação, é o sertanejo que conduz tropa de gado, mula e éguas, vendendo animais, levando e trazendo mercadorias, comboio de muitos animais de cargas. Os tropeiros foram os responsáveis pelo abastecimento de mantimentos às cidades e tiveram sua marca no desenvolvimento do Nordeste. Tropel é o fragor de tropas, barulho, rumor que fazem os animais de uma tropa, batendo os cascos no chão; confusão, desordem de animais em disparada. O tropeiro, homem rude e ignorante, na sua maioria, palmilhador constante dos caminhos abertos na solidão dos sertões, guiando apenas pelo próprio instinto. Era sempre empregado de comerciantes ou patrão, o dono da tropa, o empresário de transporte, homem constantemente requisitado, ansiosamente esperado, carinhosamente recebido.
Chegou até a se constituir num tipo humano, criado pelo sistema de transporte que explorava. Além de sua função característica de transportador, o tropeiro tornou-se indispensável em outras atividades. Era o emissário oficial, correio e o transmissor de notícias. Era o intermediário de negócios ou ainda da união entre certos urbanos afastados. Levava meses atravessando os sertões, para chegar a seu destino. A indumentária era uma conseqüência das exigências naturais do seu trabalho, e a influência espanhola está caracterizada no uso do grande chapéu de feltro e da manta sobre os ombros.
Coronel - Era um fazendeiro, não sertanejo, mas sim dono dele. A história do coronelismo é a própria história política do Brasil, na época em que surgiu no ano de 1831, quando foi criada a Guarda Nacional - “ordenanças” - para manter segurança sob seu domínio nas regiões onde habitavam. Essas ordenanças que eram uma reserva militar, muitas vezes foram convocadas para defender a soberania nacional, como na Guerra do Paraguai. Fardados e com patentes, com o título de coronel, tornaram os fazendeiros poderosos, ricos comerciantes e industriais. Seu poder era tanto que nomeava ou demitia funcionários públicos, delegados e juizes. Tais arbitrariedades eram levadas em consideração de pessoas serem seus amigos ou inimigos.
Os coronéis dominaram por mais de um século as cidades do interior, usando a bondade com tática eficaz. Eram grandes latifúndios políticos, que influenciavam na política do país, o seu domínio era intocável. O Coronelismo foi um tipo de poder político que existiu desde o Império, teve seu apogeu na República Velha, cujo poder influenciava as mais altas decisões da administração federal, tais como Pinheiro Machado e Delmiro Gouveia, ambos de renome nacional. O coronelismo já viveu seus grandes dias, foi sepultado pelo desenvolvimento tecnológico do País, mas os coronéis ainda sobrevivem em grande escala pelo Norte e Nordeste do Brasil. Nessa época, houve numerosos coronéis poderosos nos sertões da Bahia, como Horácio de Matos, Franklin Albuquerque, Militão, Marcionilio Donca Machado e muitos outros que ainda dominaram até as duas primeiras décadas do século XX.
* Jornalista, pesquisador e professor universitário. Publicou: Gregório de Mattos, o boca de todos os santos, Crônicas & poemas recolhidos de Sosigenis Costa; Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho, Godofredo Filho & o Modernismo na Bahia, dentre outros.
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